Revista O Empresário / Número 102 · Novembro de 2006
Luciana Aguiar é uma antropóloga com Ph.D. pela Universidade de Cornell, que nos últimos anos se especializou em estudar o comportamento dos consumidores de baixa renda. Ela é sócia-diretora do Instituto Data Popular. E suas pesquisas sobre o consumo na base da pirâmide social levaram-na a uma conclusão que escapa a muitos banqueiros empolgados com o processo de “bancarização”. É caro ser correntista de banco no Brasil. Muitas vezes, o custo-benefício de ter conta bancária simplesmente não compensa para muitos brasileiros das classes C, D e E – ou seja, para 87% da população brasileira. Entram na conta desde o gasto com condução para ir ao banco até as famigeradas tarifas. Com base em conhecimento empírico adquirido em anos de pesquisas de campo, Luciana traçou para a DINHEIRO um mapa de formas alternativas de relacionamento com as finanças.
Para começar, o consumidor mais pobre prefere recorrer ao varejo para pagar contas e tomar crédito. Em geral, vai a uma loja perto de casa, conhece o dono e não enfrenta muita fila. Instituições financeiras, ao contrário, são consideradas hostis. “As frases que mais ouço são: ‘o banco não fala comigo’ ou ‘banco é coisa de rico’”, diz a antropóloga. O brasileiro das classes baixas muitas vezes não tem comprovante de renda nem de residência e sabe que não pode encarar os juros das financeiras. Por isso, recorre a expedientes engenhosos para se financiar. O “bolão do crédito” é um deles. Tome-se, por exemplo, um grupo de cinco feirantes. Cada um deposita R$ 50 por mês numa caixinha. Faz-se um sorteio mensal, e o vencedor sai com R$ 250 no bolso. Paga zero de juros, contra 2,3% ao mês numa operação de microcrédito.
Outro “truque” do crédito popular é o uso do chamado “cheque elástico”. Luciana acompanhou o cotidiano de uma família de baixo poder aquisitivo de Porto Alegre, que todo início de mês entrega ao dono de um mercadinho um cheque de 100 reais. Ele não deve ser descontado, e sim servir como caução. Durante 30 dias, a família faz pequenas compras no estabelecimento, e os valores vão sendo “abatidos”. Ao fim do período, a conta é paga, o cheque é reapresentado, e o crédito, renovado. “Nesses mercados, o cliente para mais caro que no Carrefour. Mas tem o benefício de comprar fiado”, diz a antropóloga. A própria “caderneta de fiado” ainda é muito usada no pequeno varejo. Em tese, o risco para o comerciante é alto. Mas, como este é hoje um recurso para quem não tem crédito em mais nenhum lugar, a inadimplência costuma ser mínima.
Mais controverso, é o uso compartilhado do cartão de crédito – o chamado “cartão coração de mãe”, que toda a família usa. Os recibos ou não são assinados ou recebem um rabisco qualquer no lugar da firma do titular, o que causa atritos entre varejo, bancos e bandeiras de cartão. É um incômodo, claro, mas nenhum desses elos da cadeia econômica pode abrir mão de um contingente de consumidores que movimenta R$ 512 bilhões por ano e equivale a um mercado superior a Argentina, Chile e Uruguai juntos.
“Os bancos têm um longo caminho a percorrer para atingir esse público”, diz Luciana. “Mas terão de enfrentar o desafio, porque não dá para crescer no Brasil sem olhar para 116 milhões de pessoas.” A MasterCard é uma das empresas financeiras mais empenhadas nesse processo. No último ano e meio, tem investido em pesquisa demográfica e no estudo de um modelo de atuação nesse segmento. “Pegar na prateleira o produto financeiro usual e entregar para o público de baixa renda não é viável, diz Edison Raposo, diretor da companhia. A MasterCard não reconhece o cartão “coração de mãe”. A rigor, o compartilhamento do plástico é uma fraude. “Por outro lado, a gente não pode esquecer de que se isso acontece é porque há uma demanda latente por crédito”, avalia Raposo. “Cabe à gente entender essa realidade, e isso só se faz indo a campo.”
O bolão do crédito: amigos fazem depósitos em uma caixinha. O sorteado toma o empréstimo sem juros
A caderneta de fiado: pequeno varejo ainda “pendura” contas de clientes. Inadimplência é mínima no setor
Cartão coração de mãe: toda a família usa o mesmo plástico e ninguém assina. A prática é ilegal